segunda-feira, abril 05, 2010

Ladrao de raios


A vida no Olimpo grego, apesar de todas aquelas armas e aqueles poderes legais como raios e tridentes, sempre foi meio aborrecida. Tanto que, insatisfeitos em manipular os mortais de lá de cima, os deuses não perdiam uma oportunidade de pular a cerca para o plano terrestre. O que tinha de mortal grávida de bebês semideuses por aí não está escrito.

O que nos traz a Percy Jackson e o Ladrão de Raios, adaptação ao cinema do livro inicial da série Percy Jackson e os Olimpianos. O protagonista aparece em cena pela primeira vez - visivelmente crescido se comparadado com o Percy de 12 anos do livro - submerso e imóvel numa piscina. A interessante cena, que se estende por alguns segundos enquanto correm os créditos iniciais, já deixa claro: estamos diante do filho de Poseidon, deus dos mares.

Como a proximidade dos nomes já sugere, Percy (vivido por Logan Lerman) terá à sua frente uma jornada similar àquela de Perseu na mitologia grega: enfrentar meia dúzia de criaturas antropomórficas para completar uma missão. No caso de Percy, a tarefa é devolver a Zeus, deus maior do Olimpo, um raio misteriosamente furtado. Na prática, o objetivo é impressionar o pai - essa missão típica, de fundo freudiano, que se abate sobre os heroicos primogênitos na hora de provar seu valor.

Conscientemente, Percy Jackson e o Ladrão de Raios adapta para os dias de hoje a ordem antiga, então temos uma série de atualizações espertinhas ou previsíveis: o sátiro com pernas de bode se torna o personagem-negro-para-fins-de-alívio-cômico, a entrada para o Hades é em Hollywood, a tribo dos lotófagos fica em Las Vegas, o deus do inferno é um roqueiro inglês, os pés alados de Hermes viram um All-Star, Percy usa o lado espelhado de um iPod para enxergar a Medusa etc.

Tudo isso é parte do jogo. Diretor dos dois primeiros Harry Potter, Chris Columbus está tentando fazer de Percy Jackson um substituto para a franquia do bruxo - e falar a língua de seu público-alvo é essencial, por mais que isso deturpe a mitologia. Agora, o que o filme atualiza de forma talvez inconsciente, e que acaba marcando profundamente o arco de heroísmo proposto aqui, é a relação entre pais e filhos.

Porque não é difícil retratar pais - no cinema orientado para os pré-adolescentes independentes do século 21 - como tipos omissos com peso na consciência, adultos que não participam da criação dos filhos mas se sentem no direito de aplicar-lhes sermões. Por esse viés, os "pais omissos" da Grécia antiga, os deuses do Olimpo, se transformam em figuras ainda mais desautorizadas em Percy Jackson.

Você sabia que, na mitologia, Poseidon gerou Teseu em Etra com sêmen misturado ao do Rei Egeu? Em Percy Jackson, a rotina do Olimpo nunca foi tão aborrecida; Poseidon tem o cabelo penteadinho para o lado e não parece ser adepto de nenhum ménage-a-trois. A autoridade dos deuses sempre foi questionada na mitologia porque os semideuses queriam, numa luta por independência, efetivamente destruir o Olimpo. Em Percy Jackson, refletindo a juventude de hoje, os semideuses já são independentes. Querem, somente, ser reconhecidos como filhos (algo muito presente nos livros seguintes).

Qual a graça, então, de um semideus cuja intenção última não seja superar o pai? O filme tem vários defeitos circunstanciais - Perséfone entra num remendo malfeito com a saída de Ares, em relação ao livro, por exemplo - mas a fraqueza principal está na dramaticidade frouxa dessa relação deuses/mortais. Não há cena mais constrangedora em Percy Jackson do que o momento, no Olimpo, em que um dos deuses - aparecendo pela primeira vez no filme - fica sabendo que seu filho "fez arte". A cara de coitado do deus, pai ausente... Em outros tempos alguém teria sido acorrentado a uma rocha pela eternidade, para aprender uma lição.

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